sábado, 24 de abril de 2010

O Gigante de Santo Ângelo

Conhecer o Marcio, que mora em Santo Ângelo, na região das Missões, é ter uma noção de como seriam os pedestais dos mitológicos Hércules e Golias. Por uma anomalia jamais diagnosticada pela família, quando ele tinha 15 anos, já usava número 52. Hoje, aos 26 anos, sustenta-se sobre dois colossos que só podem ser calçados mediante encomenda.

Lojas de calçados que atendem a clientes de pés grandes costumam oferecer tamanhos extras até o número 48, no máximo chegam ao raro 52. Pois acredite, nenhuma delas pode resolver as necessidades de Marcio André Pinto Matje. O pisante dele: 59, e bico largo, e sola reforçada, e couro duplo de boi brasino para aguentar o tranco.

A tarefa não é para qualquer sapateiro. Há 34 anos no ramo, Jorge Oliveira da Silva precisou improvisar a maior fôrma de que dispunha, a número 44, para confeccionar um calçado para o Marcio. Colou placas de borracha no molde de madeira, até alcançar o tamanho certo. Para satisfazer o exclusivo freguês, Silva fez o solado com pneu de caminhão e entrelaçou fios de náilon nas tiras de couro. É com as únicas sandálias disponíveis no armário que Marcio se desloca e trabalha. Na manhã de 13 de abril, empurrava um carrinho de coletar lixo reciclável – uma engenhoca adaptada com o baú de um freezer, movida a rodas de bicicleta – pelas ruas dos bairros Sagrada Família e Zeferino. Em menos de três horas, já lotara o transportador com garrafas pet, papelão, latinhas e plásticos, recolhidos da lixeira de casas e empresas.

– Tem bastante gente boa na cidade, que guarda coisas para nós – disse Marcio, a testa suada, pois dispensa o boné mesmo sob a inclemência do sol.



A família de Marcio – os pais, mais oito irmãos e duas sobrinhas – sobrevive com a reciclagem de material. Usam um carrinho de tração humana, que Marcio puxa com a leveza de quem arrasta um brinquedo. Também uma carroça, mas ela está parada porque o cavalo, o Secão (tão velho que o pelo desbotou e perderam a conta da idade), machucou uma pata.

Marcio é estimado em Santo Ângelo. Mas nem sempre foi assim. Nem sempre o trataram com respeito. Quando menino, sofreu com as gozações dos colegas de aula – e como crianças podem ser malvadas ao extremo. As professoras tentavam protegê-lo do bullying, mas os gritos de “pé grande!”, “pé grande!”, “pé grande!” o perseguiam, o acossavam, o deixavam tonto e apavorado.

É UM GIGANTE PACÍFICO, QUE SONHA USAR BOTAS

A mãe, Neusa, 53 anos, culpa apenas o piazedo sem alma, porque as gurias não participavam das chacotas. O resultado foi que Marcio abandonou a escola logo no início, não teve apelo que o convencesse a ficar. Poderia ter surrado os meninos que o hostilizavam, todos ao mesmo tempo, e com facilidade, mas é um gigante que não se prevalece de sua força.

Os zombeteiros de ontem ignoravam o perigo que corriam. Hoje, Marcio levanta a parte dianteira de um Fusca, os braços substituindo o macaco que enguiçou, enquanto o vizinho completa a troca do pneu furado. Dizendo ter dois metros de altura, mas desconhecendo quanto pesa, é seguidamente convidado para serviços que exigem músculos. Rende o dobro que outros operários na descarga de tábuas. As mãos de raquete erguem dois botijões de gás como se fossem almofadas.

Talvez em consequência dos traumas da infância, talvez por se sentir diferente, ou por outras razões as quais não revela, Marcio é tímido. Não gosta de dançar. Não joga futebol. Não se diverte em turmas de rapazes. Não tem e não procura namorada. Ao ser perguntado por que diz tanto não aos prazeres da juventude, responde sem deixar margem para os abelhudos:

– Porque não gosto. Só isso.

E o que agradaria Marcio? Uma das alegrias é escutar música regionalista, não perde o programa Canta Brasil, produzido por Jairo Ferreira, da Rádio Santo Ângelo. Ficaria ainda mais contente se pudesse andar de botas. Primeiro, para realizar o desejo de se parecer com os gaúchos missioneiros que desfilam garbosos na Semana Farroupilha. Depois, para não sentir frio no inverno, que os pés são de carne e osso.

Marcio não se queixa dos alicerces – cerca de 40 centímetros, quase um teclado de computador – sobre os quais se equilibra. Mesmo que tenha sido excluído das sapatarias:

– Do jeito que Deus me deu, está bom.


Copeiado do Zero Hora

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